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15th Festival Internacional de Cinema de Bueu 2022
Interview

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Silva
Fabio
FRUTO DO VOSSO VENTRE
Versão inglesa
Sept 19, 2022

Um filho descobre as antigas cassetes 8mm do seu pai. E, pela primeira vez, vê filmagens anteriores ao seu nascimento, da sua infância e adolescência. Ao vê-las, volta à casa onde cresceu, e começa uma investigação sobre os seus pais, para tentar compreender o trauma que viveu durante toda a sua vida.

Parabéns Fábio pela seleção do Fruto do Vosso Ventre no FICBUEU. O que significa para ti estares num festival com filmes tão incríveis? 

É uma honra para mim estar selecionado para um festival com um conjunto de filmes tão amplo e tão diferente. O FICBUEU inclui cinema da Nigéria e do Paquistão, e acho isso incrível.

Já fizeste um percurso incrível com o Hip to da Hop e A Morte de Isaac em festivais. A tua formação começou na literatura. O que te levou até ao Cinema?

Eu quando era criança sonhava em ser escritor. Lia muitos romances e escrevia. Ao mesmo tempo, cresci a ver com o meu pai blockbusters americanos, westerns, musicais indianos e filmes chineses de ação. Só que o Cinema, inicialmente, era entretenimento, nunca pensei em ser realizador nessa altura, para mim era uma realidade tão tangível como ser astronauta.

 

Aos 18 anos, quando entrei na faculdade, percebi que estava enganado. E comecei a descobrir um mundo novo. Truffaut, Hitchcock, Manoel de Oliveira, Pedro Costa, vi tudo nessa altura. Absorvia muito e comecei a estudar também algumas disciplinas como filmologia, e a comprar livros sobre cinematografia. Mais tarde fiz um curso de operador de câmara, e depois fiz mestrado em Cinema.

 

Sempre fui atrás daquilo que gostava de fazer. O Cinema é, de todas as artes, aquela que mais me cativa e desafia, e por isso é que optei por fazer filmes e não por escrever livros. Mas foi importante ter começado pelo estudo da literatura, permite-me ir buscar outras inspirações e referências.


Podes partilhar como surgiu a ideia do Fruto do Vosso Ventre, e o que te inspirou a fazeres o filme? 

As pessoas riem-se sempre que lhes conto a forma como o filme foi encontrado, porque começou por ser uma curta de ficção sobre o escravo de Luís Vaz de Camões. Nesse guião que escrevi, ele fugia para um campo baldio e perdia-se por lá. Na busca de um lugar onde pudesse filmar essa fuga, descubro uma terra em Setúbal apropriada por uma comunidade cabo-verdiana, onde todos os dias homens e mulheres lá vão plantar batata-doce, milho, tomate, cana-de-açúcar, entre tantas outras coisas. Aquilo fascinou-me tanto que me esqueci da ficção, e decidi que queria fazer um documentário sobre aquela comunidade.

 

Estive nesse espaço durante meses sem saber que filme havia de fazer, porque tinha fascínio por muitas coisas naquele lugar. Mas tinha de me focar em algo, não podia filmar tudo. A determinada altura (e já numa fase em que começava a desesperar, porque tinha a pressão da data de entrega imposta pelo mestrado), apercebi-me que estava ali porque aqueles cabo-verdianos me faziam lembrar as minhas raízes, a minha família, a minha mãe e, sobretudo, o meu pai. Foi aí que decidi abandonar aqueles campos e fazer um filme centrado em mim, e sobre a minha relação com a minha família.

 

É um filme bastante pessoal. Tiveste alguma apreensão em contar a tua história, ou em descobrires até onde a tua investigação te podia levar?  

 

Ao início tive muitas dúvidas em relação a expor o filme. Tinha medo da reação das pessoas, estava consciente do que implicava contar os meus segredos familiares. Mas à medida que fui mostrando a amigos e aos meus professores, as dúvidas começaram a dissipar-se. O que vou dizer pode parecer estranho, mas senti que não era propriamente uma escolha minha, e que o filme devia pertencer à esfera publica e não privada.

 

Mas antes de submetê-lo a festivais, tinha de mostrá-lo ao meu pai (a minha mãe, nesta altura, já tinha visto). Ele é o derradeiro espetador, eu tinha de enfrentar esse processo. Fui ter com ele a tremer. Sentámo-nos os três, eu, ele e a minha mãe, e vimos juntos o filme.

 

Acho que só quando o filme terminou é que ele teve consciência o quanto me tinha magoado. Lembro-me de ele ter olhado para o chão da sala, como se todo o seu passado lhe tivesse caído em cima, com uma nova perspetiva acerca da nossa relação. Contudo, ele levantou-se e despediu-se de mim com muito esguardo. Apesar de tudo, ainda elogiou o meu trabalho (ele nunca tinha visto nenhum filme meu, acho que nem sequer sabia que eu era realizador). E, para mim, foi o suficiente para eu ter a sua aprovação.

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Quais foram os teus pensamentos quando viste pela primeira vez as cassetes 8mm do teu pai?

 

Foi quando saí do lugar onde estava a comunidade cabo-verdiana, e decidi que queria fazer um filme centrado na minha família, que decidi ver as várias cassetes 8mm do meu pai. São várias horas e horas de filmagem, com imagens minhas ainda na maternidade, quando gatinhava, na adolescência e também na fase adulta. Quando as vi, senti-me num carrossel emocional. E, como eu e o meu pai já não tínhamos uma grande relação, custou-me imenso vê-las.

 

Inicialmente, fiquei tão compadecido que quis fazer as pazes com ele. A primeira versão do guião era, na verdade, uma tentativa de aproximação da minha parte. Mas à medida que fui conversando com a minha mãe, e descobrindo algumas das coisas que ele tinha feito ao longo dos anos, as imagens iam tendo outro significado – a nostalgia tornou-se subitamente soturna e amarga.

 

Além disso, reparei noutro pormenor: reparei que a minha mãe ia aparecendo cada vez menos, e ia ficando cada vez mais magra e triste em cada uma das filmagens. A determinada altura, ao ver o arquivo, deixei de olhar tanto para mim, e comecei a olhar mais para ela. E julgo que o filme também conota essa mudança no meu olhar.

Quão importante é para ti a tua relação com a equipa que trabalhou contigo?

Eu devo ser das pessoas que trabalha com menos gente, porque sou o responsável pela captação e edição dos meus filmes. Em o Hip to da Hop éramos apenas dois realizadores a fazer todo o trabalho criativo. E agora, tanto em o Fruto do Vosso Ventre como em A Morte de Isaac, tenho trabalhado com o João Pedro Soares. Temos trabalhado em conjunto em todos os projetos. Ele também é realizador, eu fui o diretor de fotografia dos seus dois filmes, Retrato de um Homem Enquanto Ilha (2020) e A Incessante Conquista da Escuridão (2021), que estreou ao lado do meu no Curtas Vila do Conde. Ele assina como assistente de realização nos meus filmes, mas para mim foi muito mais que isso: ele esteve sempre comigo em todo o processo de investigação, soube sempre indicar se eu seguia ou não o melhor caminho; tivemos longas conversas durante meses, e o filme nasceu muito por causa dessas conversas entre nós os dois.

 

Costumo também mostrar os meus projetos às pessoas que me são mais chegadas, quando eles ainda estão numa fase embrionária. Trabalho sempre com o André Almeida na sonoplastia, e com o José Leal Riça na comunicação. São pessoas criativas, em quem posso depositar a minha confiança.

 

Há pessoas que têm um papel direto, e há outras que nem tanto, mas as suas opiniões são muito importantes para mim. Lembro-me de, por exemplo, ter mostrado à minha namorada uma das primeiras versões, e de ela me ter perguntado porque é que não refiro que tenho uma irmã. E inclui isso depois. Acrescentar esse momento fez toda a diferença.

Foste também o responsável pela edição do teu filme. Como é que conseguiste gerir todos estes papeis criativos?

 

A montagem é a melhor fase da construção de um filme. A escrita é desgastante, a rodagem é cheia de intempéries, e a montagem (embora seja também cansativa) é para mim como construir um puzzle. Surge nesse momento algo totalmente novo.

 

Há realizadores em que julgo que o seu lado mais forte é a escrita, como o Bergman ou o Paul Schrader. Outros estão muito no campo da imagem, como o Malick ou o Kubrick. E há outros que inclinam as suas energias muito para a fase de montagem, como o Resnais ou o Chris Marker (é uma opinião muito pessoal, outros poderão discordar desta tese). Eu julgo que pertenço muito a esta última categoria de realizadores; a montagem é a fase que mais me fascina. Como diria o Orson Welles, é o único momento em que o realizador tem controlo absoluto, e é quando um realizador é um verdadeiro artista. Eu partilho da mesma opinião.

 

É durante a montagem que eu imagino o olhar do espetador. O guião e as imagens até aqui são ideias, uma potência de algo que pode ou não crescer, uma fórmula matemática à espera de ganhar uma força física. É aqui que o jogo fica aliciante, o lugar onde podemos prever determinadas emoções e expetativas de quem vai estar sentado na sala de Cinema. O desenho torna-se verdadeiramente esculpido apenas nesta fase. Somente aqui é que o Cinema se torna realmente mágico.

Quando estavas já na fase de rodagem do Fruto do Vosso Ventre, foste flexível perante aquilo que ia acontecendo, ou seguiste aquilo que tinhas previamente definido? 

Eu já tinha um guião e um storyboard antes de começar a filmar. A maioria das vezes trabalho dessa forma, antes de ir para a fase de rodagem tenho de compreender muito bem o que será feito. Monto, inclusive, uma espécie de animatic só com desenhos e imagens de referência, e gravo toda a minha voice over antes da rodagem. Mas deixo sempre abertura para imprevistos quando já estou com a câmara na mão.

 

Por exemplo, o momento em que a minha mãe aparece a fazer a cama do seu quarto não estava escrito. Eu queria filmar a casa vazia, mas ela apareceu, e eu não conseguia filmar fingindo que ela não estava lá. Por isso pedi-lhe que fizesse essa ação. Nesse instante, os vizinhos de cima estavam a pregar algo na parede. E, para mim, toda essa cena tem muita força: ouvimos a minha voz dizer “a minha mãe perdeu dois filhos”, ouvimos ao fundo as pancadas secas na parede a serem feitas pelos vizinhos, e a minha mãe com um rosto muito concentrado a estender os lençóis e a arrumar as almofadas. Acho que se essa cena tivesse sido escrita não teria ficado tão dramática.

Qual foi a parte mais desafiante na realização deste filme?

Geralmente, costuma ser na fase de rodagem ou na montagem onde há mais desafios, e quando o filme está terminado e é selecionado para festivais, é que podemos descontrair. Mas comigo foi o inverso. Fazer o filme foi como um grito catártico, mostrá-lo a outras pessoas custou-me bastante.

A primeira vez que foi exibido foi no Indie Lisboa, na sala Manoel de Oliveira, e vários amigos estavam lá para ver a sessão. A maioria desconhecia por completo a história da minha família, a sessão estava quase esgotada, e a minha mãe estava ao meu lado. Foi algo muito emotivo, ficámos de mãos dadas a sessão toda. Ambos sabíamos o quão importante era para nós aquele momento.

Agora sinto que essa fase, onde pairava esse medo do julgamento alheio, já passou. A maioria das pessoas diz que fui corajoso, mas houve pessoas que questionaram até que ponto é que devia ter ido tão longe na exposição de coisas tão privadas. Aceito todas as opiniões, para mim são todas válidas.

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"Mas saber que posso mudar a perspetiva de vida de outras pessoas..."

De que forma é que o mestrado em Cinema te ajudou durante o processo? 

O mestrado em Cinema foi extremamente importante. Eu já tinha feito o Hip to da Hop antes de ingressar no curso, mas sentia que precisava de encontrar a minha voz autoral.

E foi por isso que me inscrevi na Escola Superior de Teatro e Cinema, em Lisboa. Quem mais me ensinou mais foi o professor Vítor Gonçalves, que é também realizador. Teve a paciência de me encaminhar para o sítio certo. É como se sempre soubesse as respostas a todas as minhas perguntas, mas deixasse quase sempre que eu as encontrasse, mesmo que isso levasse semanas.

 

Eu gostava de ser um dia uma espécie de poeta cinematográfico, só ter imagens belas, provocar uma emoção que se aproxime do sublime. É algo muito idílico, mas é essa a minha ambição a longo prazo. E acho que é isso que a escola estimula os seus alunos a fazer, no sentido de ajudar-nos a encontrar a nossa voz autoral.

Consideras transformar o Fruto do Vosso Ventre numa longa-metragem?

O meu próximo filme será uma longa-metragem documental, que será uma continuação do Fruto do Vosso Ventre. Já montei uma versão de uma hora e meia, mas decidi que vou refazê-la e filmar tudo de novo. Tenho viajado, passado muitas horas a conversar novamente com a minha mãe, revisitado arquivos, lido livros de sociologia e história e conversado com investigadores cabo-verdianos. Tem sido interessante todo o processo de construção do filme. E quem viu o Fruto do Vosso Ventre irá ficar com uma visão mais global...

Qual foi a lição mais valiosa que aprendeste ao realizar este filme, e de que modo é que o Fruto do Vosso Ventre reflete a tua visão enquanto cineasta?

Acho que a lição mais importante que aprendi foi ser o mais sincero possível. A arte tem que ver com honestidade. Se o realizador não for honesto, pode eventualmente ter sucesso, mas a máscara irá eventualmente cair um dia. Esse tem sido o meu principal foco.

Entretanto o Fruto do Vosso Ventre já teve em vários festivais, em Espanha, no Brasil, na Alemanha, foi vencedor de quatro prémios, mas para mim tudo continua a ser uma surpresa. Estou muito feliz que o filme tenha tido esse percurso, mas tento que o meu foco seja somente criativo, e que tudo o resto venha um pouco por acréscimo.

Sempre tiveste paixão pelo processo de fazer filmes?

Eu detestei a primeira vez estive num set de filmagens. Tinha uns 20 anos na altura. Voluntariei-me para ser assistente num filme do Vicente Alves do Ó, mas quando percebi a forma tudo funcionava por detrás das camaras fiquei desconsolado. Ninguém me tinha dito o quão difícil era um dia de rodagens. Apareci lá dois dias apenas, e não voltei a meter lá os pés. Fiquei mesmo abalado.

 

Comecei a gostar de estar em sets de rodagem quando descobri que podia fazer filmes. Desde então comecei a estudar outros realizadores, e a perceber como é que os outros fazem. Não estudo apenas realização, mas também direção de fotografia e montagem. Leio o máximo possível, livros sobre edição, história de cinema, e teorias de montagem. Vou começar agora um doutoramento em Cinema porque tenho mesmo uma fome insaciável por saber mais acerca desta arte, e quanto mais sei mais tenho consciência que não sei nada.

Que conselhos ou dicas darias a um cineasta emergente?

O primeiro conselho seria não terem pressa. Há muitos artistas que só começaram a ter sucesso já depois dos cinquenta anos porque tiveram até então a aperfeiçoar o seu estilo. Julgo que é preciso ter paciência e não desesperar se não tivermos êxito ainda enquanto jovens.

 

Depois, acho que também é muito importante não acharmos que estamos a descobrir a pólvora. O Cinema existe desde 1895 (pelo menos), e, portanto, é preciso saber o que já foi feito desde o início. Nenhum artista pode ser bom se não conhecer a história da arte que produz. Se não podemos estar a fazer algo que já foi feito há cinquenta anos, e achar que é algo novo e totalmente disruptivo.

 

Por último, aconselho a que façam filmes, mesmo sendo difícil o seu financiamento. Atualmente, com o progresso do digital, isso é possível. Se não conseguirem fazer o projeto hercúleo que ambicionam, façam algo mais pequeno. Comecem por filmar as vossas ruas e os vossos familiares (como fez o Scorsese), se quiserem fazer uma ficção, filmem com amigos e reduzam o orçamento ao mínimo (o primeiro do filme do Nolan é um bom exemplo). Mas é importante não desistirem, mesmo quando as condições financeiras não são muito favoráveis.

E, finalmente, o que esperas que o público retire quando assistir o Fruto do Vosso Ventre?

Houve uma jornalista que me entrevistou, e disse que o meu filme lhe tinha marcado porque a fez refletir sobre a sua relação com o seu pai. As suas palavras ficaram em mim. Até aí achava que o filme era tão pessoal que o espetador acabava de ver e ficar a pensar somente sobre a minha família, e sobre aquilo que eu tinha exposto. Mas saber que posso mudar a perspetiva de vida de outras pessoas, vale mais que qualquer prémio ou seleção num festival.

 

O Cinema para mim deve deixar-te desconfortável, arrancar-te o tapete dos pés. Eu quero que o espetador se sinta estrangeiro. Ainda há muita gente que vê o Cinema como sendo apenas entretenimento. Mas, para mim, os filmes que quero fazer devem deixar-te num estado de inquietação. Deves sair da sala e questionar acerca da tua realidade. É esse o tipo de filmes que quero fazer.

© 2025 The New Current

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